Entrevista com Pedro Corrêa do Lago
Entrevista com o coleccionador de autógrafos e editor Pedro Corrêa do Lago, que publicou em Outubro Marcel Proust, une vie en lettres et en images, um belo livro publicado por Gallimard e prefaciado por Jean-Yves Tadié.
Ele é um gigante com voz de barítono, um ogro gentil e poliglota que devora os livros ao invés das criancinhas.O colecionador brasileiro Pedro Corrêa do Lago foi um dos principais protagonistas do ano Proust 2022, primeiro nos bastidores como emprestador das exposições « Proust, um romance parisiense » do museu Carnavalet e « Marcel Proust, a fábrica da obra » na Biblioteca Nacional da França. Em seguida, no final de Outubro , os holofotes se voltaram para seu livro « Marcel Proust, uma vida entre cartas e imagens » publicado pela editora Gallimard. Sua coleção de manuscritos, de desenhos e fotos de Proust (e isso vale também para Victor Hugo) é tão imensa quanto a sua generosidade e sua vontade de partilhar. Ele parece ter feito sua esta máxima de Proust : « A coleção privada tem que se tornar museu, senão ela frusta a coletividade ». O homem-livro também foi jornalista, presidente da Biblioteca Nacional do Brasil, representou a Sotheby’s , e entrevistou Borges, Michaux , Leiris, Burroughs entre outros. Nessa entrevista amazônica com aquele que apelidei de « Albert Khan do manuscrito » exploro seu percurso único de colecionador e de historiador da arte.
Qual sua reação à extraordinária volta de Lula a liderança do país ?
O governo Bolsonaro foi o mais desastroso da história brasileira. Tenho muita esperança de que Lula e a frente ampla que o elegeu possam retomar para o Brasil o caminho da dignidade.
O amor aos livros é uma paixão de família ? Seu pai e seu avô também tinha biblioteca colossais ?
Não, meu avô e meu pai tinham boas bibliotecas, na medida de seus maiores interesses. Eram leitores apaixonados por seus assuntos, respeitavam e amavam os livros, mas não ligavam para edições raras.
Seu avô também era bibliófilo, colecionador como você o é ?
Não, ninguém na minha família foi colecionador, senão meu irmão sete anos mais velho, que formou desde a adolescência uma grande coleção de moedas. Isso talvez me tenha influenciado pois aprendi com ele cedo o que era uma coleção.
Seu avô ou seu pai liam Proust ?
Minha mãe lia Proust. Minha mãe leu Proust e foi profundamente tocada por ele, sobretudo em seus últimos anos.
O prurilinguismo é também atávico na sua família ? Quantas línguas você fala hoje ?
Pelo fato de meu pai ser diplomata, seus cinco filhos, todos homens, tiveram a oportunidade de aprender várias línguas nos diversos países em que ele era mandado. O francês foi a principal, que todos aprendemos na infância, o inglês mais tarde, naturalmente, também o espanhol, e no meu caso, o italiano. Hoje falo cinco línguas. Sonhei cedo em aprender alemão para apreciar melhor a poesia. Não deu, mas tenho muito prazer hoje com a poesia espanhola e italiana.
Você criou as edições Capivara com Bia, sua mulher, há 20 anos. Qual é a linha editorial e por que ter escolhido esse roedor como emblema ?
A Capivara é especializada em livros amplamente ilustrados, geralmente sobre os principais artistas do Brasil anteriores ao século XX. Escolhemos uma capivara como logo da editora pois uma delas comendo capim aparece com destaque no mais famoso quadro de Frans Post (cujo catálogo raisonné escrevi com Bia) que pertence ao Louvre. Usamos essa capivarinha do Frans Post como símbolo e até hoje ela aparece nas capas, às vezes estilizada.
Seu livro « Brasil : os primeiros fotógrafos do Império sob os tópicos » que foi publicado pela Gallimard em 2006, já dá uma ideia modesta do trabalho memorial levantado pela Capivara ?
Esse livro foi feito com um leitor francês/europeu em mente e não tanto para um leitor brasileiro, preparado para livros de pesquisa mais ampla. No entanto, traduzido para o português, teve uma bela carreira, pois apresentava uma súmula da produção fotográfica brasileira do século XIX, também útil para o leitor brasileiro.
A fabricação de livros para o mercado brasileiro obedece a certas leis químicas diferentes dos meios mais secos e temperados como o mercado europeu ?
Sem dúvida ! Na Europa há um mercado cativo de compradores para livros de arte. No Brasil o mercado é menor, mas leis de incentivo permitem às empresas apoiar projetos mais ambiciosos, o que torna possíveis projetos como os de nossos livros que muitas vezes tem 700 páginas e mais de 2.000 ilustrações, como no caso dos catálogos raisonnés dos grandes artistas do passado atuantes no Brasil.
Sem dúvida ! Na Europa há um mercado cativo de compradores para livros de arte. No Brasil o mercado é menor, mas leis de incentivo permitem às empresas apoiar projetos mais ambiciosos, o que torna possíveis projetos como os de nossos livros que muitas vezes tem 700 páginas e mais de 2.000 ilustrações, como no caso dos catálogos raisonnés dos grandes artistas do passado atuantes no Brasil.
A expressão « catálogo raisonné » encontra um forte eco em sua coleção de manuscritos autógrafos, que também é uma tentativa « ridiculamente ambiciosa » (segundo suas próprias palavras) de documentar de forma abrangente a cultura ocidental. Essa procura em forma de inventário é também uma utopia. Os grandes enciclopedistas do século XVIII teriam tido influência na sua formação e na sua obsessão pelo manuscrito ?
De fato, a coleção assumiu uma ambição enciclopédica quase sem que eu me desse conta há cerca de vinte anos. O espírito dos enciclopedistas do século XVIII, que sempre me fascinaram, talvez estivesse em parte por traz desse projeto desmedido. Em minha editora, gosto de publicar livros que se propõem a esgotar assuntos e os catálogos raisonnés certamente se inscrevem nesse grupo. Minha coleção não pode naturalmente almejar semelhante ambição de « esgotar » um assunto de tal forma infinito quanto a cultura ocidental, mas talvez a de abrangê-lo o suficiente para eu sentir que cheguei muito perto.
Pode se dizer de sua coleção que se trata de uma celebração da palavra escrita, uma vez que o denominador comum de seus milhares de documentos é a presença de uma menção manuscrita autógrafa ? Menos de 5% das línguas existentes são línguas escritas. O que evoca para você essa estatística com relação ao prestígio esmagador da palavra escrita ?
Confesso que não conhecia esse número e as línguas que permanecem me parecem ser naturalmente aquelas que alcançaram o registro no papel. O que me atrai nos autógrafos é a presença física do autor do documento e aquilo que para mim emana do papel : é preciso que o personagem tenha tocado no documento, ainda que só tenha deixado menções manuscritas e não o tenha assinado. O autógrafo para mim prescinde da assinatura.
« A Magia do manuscrito » é o título da exposição que apresentou sua coleção em Nova York em 2018 e em São Paulo e em 2022 e que foi o assunto de um imponente catálogo publicado pela Taschen em seis línguas. Nele encontram-se tanto manuscritos de escritores quanto partituras de músicos, cartas de personagens históricos, posters assinados e até documentos pessoais… Se o manuscrito parece eterno, os rascunhos de escritores são cada vez mais raros. Procura-se arquivar hoje e publica-se já a correspondência por e‑mail de escritores. Sendo assim, a genética do texto parece agora uma disciplina sem futuro. Com isso, qual é, segundo você, o futuro do manuscrito na era numérica ?
De fato, o fascinante estudo das hesitações e correções do autor que permitem os manuscritos abundantemente corrigidos de escritores do passado como Flaubert ou Proust deixará de existir, a não ser que os escritores adotem programas de computador que registram suas correções. Como esses programas não me parecem ter sido inventados e nem a imensa maioria dos escritores estará preocupada com eles, é provável que nunca se possa desvendar o caminho pelo qual os escritores do futuro chegarão ao seu texto final.
Você compra suas peças em livrarias especializadas, casas de leilões, etc, mas você continua a pedir autógrafos de personalidades para alimentar sua coleção atual ?
Sou um colecionador apaixonado de autógrafos no sentido amplo, mas nunca fui caçador de assinaturas. Uma simples assinatura num pedaço de papel (que só prova que a pessoa sabe escrever seu nome) deixou de me interessar há muito tempo. Pedi pouquíssimas assinaturas a pessoas famosas em minha vida. Acho que não o faço há várias décadas.
Voltando ao Proust, você não escapará à minha tradicional pergunta. Como e com que livro você descobriu Proust e qual foi sua primeira impressão da obra ?
Descobri inicialmente Proust da maneira errada : obrigado a lê-lo por um mau professor de francês no liceu aos 16 anos. Os trechos que tive que estudar não me agradaram e só dois anos mais tarde, por volta dos 18 anos, ouvi por acaso o conselho de uma pessoa cuja opinião eu respeitava. Disse-me que tentasse de novo pois intuía que a obra me encantaria. Fiquei intrigado. Peguei Du côté de chez Swann em livro de bolso e aí começou a sedução que perdura há quase cinquenta anos.
Proust ocupa sem dúvida um lugar à parte em sua coleção. É o escritor mais representado no conjunto de seu acervo ?
Proust é certamente o escritor mais presente na minha coleção, mas de alguns outros também pude reunir conjuntos extensos como aqueles em torno de Stefan Zweig, Victor Hugo, Flaubert, Fernando Pessoa, e outros escritores de quem possuo dezenas de cartas assim como muitas fotos e material relativo a suas vidas e obras.
Quarenta anos de aquisição de manuscritos e documentos Proustianos levaram a esse livro Marcel Proust – Une Vie de Lettres et d’Images. Quando e como você realizou que poderia fazer da sua coleção um livro ?
Eu sempre, desde os 20 anos, quis formar para meu próprio prazer um panorama da vida de Proust e fui juntando o material que surgia e que cabia no meu bolso. Nos últimos dez anos me dei conta que a acumulação havia crescido a ponto de se comparar ao volume de peças reproduzidas nos livros ilustrados sobre Proust que eu conhecia, e no meu caso com muito material inédito. Mas eu poderia ter levado vários anos a mais para realizá-lo não fosse a iniciativa de Jean-Yves Tadié de me encorajar a apresentar esse livro para a Gallimard.
O formato do livro e sua fabricação são muito interessantes, é um belo livro mas ele é bastante leve, e não intimida o leitor. É um objecto profundamente simpático e envolvente, muito semelhante a si. Sei que a vossa participação e sugestões na concepção do livro foram importantes. Era o que você procurava ?
Era exatamente o que eu procurava e eu fiquei muito feliz que a editora Gallimard também achasse essas as melhores soluções para essa espécie de biografia ilustrada de Proust., Sou editor de livros ilustrados há mais de vinte anos e tive a oportunidade de publicar alguns outros livros biográficos. Ultimamente me convenci que essa opção que você descreve talvez seja uma das maneiras mais eficientes de organizar um livro com muitas imagens e muita informação. É preciso ajudar o leitor, quase tomá-lo pela mão e guiá-lo entre uma multidão de imagens.
Proust está no coração do livro, mas no fundo muitas páginas duplas são muito contextualizadas e não poderiam existir sem o ecletismo e a profundidade da sua coleção.
Sempre entendi a vida de Proust como inserida na Paris de seu tempo, talvez o centro do mundo na época em que viveu.
É verdade que possuir uma coleção ampla me deu muitas alternativas para pinçar peças de outras figuras que me pareceram complementares da narrativa em torno de Proust que eu buscava desenvolver.
Não se pode evocar em algumas perguntas toda a riqueza do livro, mas você pode talvez nos esclarecer sobre alguns inéditos e inclusive de retratos do escritor ?
A iconografia de Proust é bastante restrita, pois como você sabe ele deixou de frequentar qualquer estúdio fotográfico 18 anos antes de sua morte. Os inéditos apresentados no livro são sobretudo peças manuscritas e retratos dos amigos de Proust, mais do que imagens do próprio escritor.
Entre os retratos contemporâneos de Proust que o livro pôde revelar há somente uma ilustração de jornal, certamente adaptada de fotografias, que o mostra com o rosto um pouco mais cheio, quando ganha o Goncourt. Mas há sobretudo os dois desenhos até então inéditos no seu leito de morte, devidos ao escultor Émile Perrault-Harry, muito provavelmente o primeiro artista a retratar Proust nos dias que se seguiram à sua morte.
Uma última pergunta. Já leu a Recherche em português, em alguma das suas versões, e se sim, qual é a sua apreciação do texto ou textos nessa língua ?
Li a Recherche em francês, mas tive mais tarde a curiosidade de frequentar as sucessivas traduções, que são todas notáveis na minha língua, pois alguns dos nossos maiores poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana se dedicaram a traduzir Proust nos anos 1940. Houve mais tarde uma tradução interessante de um psicanalista chamado Fernando Py e há apenas um mês foram publicados no Brasil os dois primeiros volumes da Recherche numa tradução inteiramente nova devida a Mário Sérgio Conti no primeiro e Rosa Freyre d’Aguiar no segundo. Só tive tempo de percorrê-las mas me pareceram excelentes.
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